terça-feira, 18 de outubro de 2011

O ESPASMO

Ele me fitou sem fazer estardalhaço. A passos largos e cadenciados, fez com que eu desejasse a mais completa aproximação. Inclinou um pouco a cabeça quando seus olhos pararam, sem espanto ou alarde, nas minhas cicatrizes. Sorriu, sossegado. Ali estava ele. Sereno, puro e transparente, reluzindo fortemente como um clarão que oferece nada além do que apenas sua estonteante beleza. Não pediu nada além de um pouco de zelo. O contorno alvo, imperceptível ao admirar alheio, em contraste com os olhos de um negro profundo lhe conferiam uma palidez venerável. Doce e melancólico, queria me dizer algo mais. Pedia, apenas, para que eu cedesse.
Abraçada fui por uma onda de expectativa e medo, enquanto percebia o mais cálido corpo que ansiava pelo meu, em fome. Senti, de súbito, a emanação violenta que aqueles sussurros eram capazes de me causar. Cada sopro só fez umedecer meus cabelos e esquentar meu sangue, impulsionando a mais asilada das concentrações. O desejo de vibrar o adormecido imiscuía-se à letargia  deliberada que espancava minhas vísceras.
Não podendo mais me conter, renunciei a qualquer hesitação. Pude senti-lo, mãos ansiosas,  respiração difícil. Arfava a cada lampejo de consciência que me acometia. Mas não poderia não poder, não poderia negar o que simplesmente não se pode negar. A parte de mim que havia nele emancipou-se e flutuou, me procurando com olhar de quem sabe o que quero. Realmente sabia,  como queria que não soubesse... Pressionou seu corpo frágil e trêmulo sobre o meu ainda com mais vontade, me engolindo em beijos candentes e usurpando minha vida em sua saliva quase cáustica. Não pediu licença para explorar cada pedaço, não se intimidou com qualquer tentativa débil de reprovação. Sua voz era musical, com falhas causadas pelo desespero incontrolável do desejo... Mas aquela imperfeição a deixava ainda mais convidativa...
No compasso convulso com que seu corpo balançava, a boca se entreabria em agonia aspirada e insuportável. O abalo cada vez mais forte, mais veloz, mais intenso. O cheiro torturante que alimentava o apetite cada vez maior do meu corpo, que se espalhava por sobre aquele em um fluxo perfeito. Então, ansiado, com voracidade jamais experimentada, o espasmo. O espasmo e a luz. E o som. E a luz.

por Bárbara Caldeira

segunda-feira, 17 de outubro de 2011

O INCRÍVEL NOVO

A chuva que cai vai levando todo o pesar que um dia, bem mesmo ontem, queria esmagar as minhas esperanças de vida nova, menos patética e mais atraente. Sim, eu sinto o novo, sinto o inédito, sinto o frenético e o inevitável: o movimento pelo qual eu esperei nesse fim de luz. Agora, me deparo com um talho mal feito na minha pele, mas que permite entrar uma espumosa junção promissora de mistério e excitação. Uma bruma que mais mostra do que esconde.

As gotas que caem penetram até o mais impenetrável do meu corpo: rasgam adentro com afinco, buscando suprimir cada tecido deteriorado e substituí-lo por algo mais viçoso. A superfície vai desgastando, corroída pelo tempo e pelas lágrimas. E, por debaixo e pelo torpor, posso ver pequenos seres cheios de artimanhas que se desprendem um a um e salpicam cores que desnorteiam meus sentidos. Elas dançam displicentemente ante meus olhos, que esperam o mais incrível dos fenômenos: o novo. Giram no alto provocando a atenção e chamando para o mais incrível do que quero: o novo.

O cheiro é limpo e fácil e ocupa o espaço de todo aquele ar espesso e de olhares lancinantes, que antes mutilavam o que até conserto tinha. A voz é calma e percorre seu caminho com fluidez espantosa, emite aquilo que explode e reverbera por dentro. E cresce, cresce e estoura, espalhando sua fluidez. Nesse agora, faço o que corre incansavelmente pelas veias procurando nunca achar. É tempo. É tempo de menos e de melhor. É tempo de retomar e redimir. É tempo de retornar e resignar. É tempo de suavizar a dor. É tempo de designar.  É tempo de lembrar e esquecer, é tempo de desejar e ansiar em ritmo crescente. É tempo de ritmar; é tempo de ritmo. Dê-me ritmo. É o incrível novo.


por Bárbara Caldeira